A rotina tem seus encantos

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Holly Sonnets, X.

Death, be not proud, though some have called thee
Mighty and dreadful, for thou art not so ;
For those, whom thou think'st thou dost overthrow,
Die not, poor Death, nor yet canst thou kill me.
From rest and sleep, which but thy picture[s] be,
Much pleasure, then from thee much more must flow,
And soonest our best men with thee do go,
Rest of their bones, and soul's delivery.
Thou'rt slave to Fate, chance, kings, and desperate men,
And dost with poison, war, and sickness dwell,
And poppy, or charms can make us sleep as well,
And better than thy stroke ; why swell'st thou then ?
One short sleep past, we wake eternally,
And Death shall be no more ; Death, thou shalt die.

John Donne.

sábado, dezembro 22, 2007

Porque “Tropa de Elite” é um bom filme.

Passado um pouco o furor que precedeu e cercou a exibição de “Tropa de Elite”, acredito que ainda se faz necessário um esforço de esclarecimento a respeito do assunto do filme; sobretudo levando-se em consideração o fato de que, por tudo o que li e ouvi até agora, seu conteúdo foi largamente mal avaliado. O equívoco na interpretação do argumento deve-se em grande parte às próprias características de seu meio, uma obra de ficção. A escolha de se apresentar um argumento medianamente complexo ao modo de um filme tem uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem reside no alcance e penetração que este tipo de discurso possui, mas o seu reverso é a falta de clareza conceitual, característica intrínseca à ficcionalidade. Seja como for, “Tropa de Elite” produz uma intervenção contundente no debate público a respeito da segurança pública, e seus termos devem ser corretamente aprendidos, ainda que seja para se lhes opor.

Em primeiro lugar, não se trata de um elogio ao Bope, nem me parece ser a intenção dos autores heroicizar o seu narrador, o Capitão Nascimento. Se o argumento foi entendido dessa maneira, isso se deve a uma falha ou de virtude intelectual ou moral do público, sugerindo a desoladora constatação de que a situação descrita pelo filme tende a se perpetuar.

Afinal, de que trata então o filme? O enredo vai se cosendo como uma narrativa clássica de “romance de formação”, em que o personagem, interagindo em contextos diversos, vai aos poucos superando suas contradições até realizar seu “destino”. Terrível destino, devo dizer; porque a formação em questão é a de um “monstro”. Refiro-me ao aspirante a oficial da polícia e também aluno do curso de Direito na Universidade Católica do Rio, André Matias, interpretado por André Ramiro. André, pobre e negro, vê-se às voltas com a difícil tarefa de conciliar sua inserção numa universidade freqüentada por membros da elite – cujo ethos vai de encontro alguns de seus valores, sobretudo no que diz respeito ao consumo de drogas e às opiniões prevalecentes a respeito da instituição policial – e sua própria carreira como aspirante a oficial da mesma. Ao mesmo tempo, André tem suas aspirações virtuosas confrontadas com as seculares práticas de corrupção que cercam sua vivência como policial. É justamente em função deste último embate que se produz o evento que dá início ao filme, e coloca André diante de seu Mefistófeles, o complexo Capitão Nascimento, comandante de uma unidade de elite da polícia carioca, originalmente criada para atuar em situações excepcionais. Ao mesmo tempo narrador do filme, Nascimento não é simplesmente um “agente do mal” - ainda que seja ele o responsável direto pelo desvio do herói (André) -, mas um experiente policial, dilacerado entre as pressões privadas, familiares, e seu dever como policial. Sempre à beira de uma crise nervosa, Nascimento, obrigado a trabalhar numa situação limite, acaba aderindo a práticas de violência e tortura que transbordam das suas prerrogativas. Paradoxalmente, Nascimento é absolutamente lúcido a respeito de seu contexto, é absolutamente cônscio dos limites da ação individual dentro de um arranjo socioinstitucional distorcido, incapaz de prover os incentivos necessários ao cumprimento da tarefa da segurança pública de maneira virtuosa, ou mesmo eficaz. Nascimento encarna então a figura dramática do “cético-realista”, aquele que sabedor dos limites, conhecedor da situação, age para atingir um resultado, a contrapelo de sua consciência, sacrificando-a. É esta a lição que dele receberá André, seu discípulo e substituto.

Afasto-me da trama e passo ao que realmente importa neste filme, o argumento sociológico que subjaz à mesma. É disto que se trata: uma intervenção sociologicamente bem informada num debate político. Convém lembrar que o filme é uma adaptação de um livro escrito por um sociólogo e dois membros do Bope. O drama das personagens e a narrativa do Capitão Nascimento desvelam um panorama da situação da segurança pública da cidade do Rio de Janeiro, com extrapolações possíveis àquela de todo o país. O próprio Nascimento e a sua atuação no Bope evidenciam o sintoma mais terrível do estado de calamidade que decorre da corrupção das instituições responsáveis pela segurança do Estado.

O argumento é o seguinte: a falência da instituição policial, que envolve uma combinação de policiais mal pagos e mal preparados, muitos dos quais envolvidos em ações criminosas, desde pequenas contravenções, como a venda das peças de suas viaturas e cobrança de propinas, até gravíssimas, como a venda de armamento para traficantes e participação na venda de drogas, em conjunto com muitas outras causas (das quais não trata o filme), produz uma situação em que uma unidade especial, originalmente destinada para atuar apenas em casos extraordinários (“operações especiais”, informa a sigla), treinada para guerra, para matar, torna-se o único recurso de que dispõe o Estado para lidar com o problema da segurança. O resultado é, obviamente, terrível. É como usar canhões para combater nuvens de gafanhotos, mata-se alguns, mas se destrói tudo em volta. A metáfora é ainda insuficiente, dado que o problema em questão envolve pessoas, e não insetos. De qualquer modo, acho que ajuda a esclarecer o ponto. A própria arma, quando usada inapropriadamente, como é o caso da atuação do Bope fora de seu contexto, acaba por corromper-se. Policiais não devem matar pessoas, podem fazê-lo, mas apenas em casos extremos; e policiais não devem torturar pessoas, jamais. Ponha-se uma unidade de guerra atuando repetida e cotidianamente em situações para as quais não foi feita, e temos distorções, tais como a conduta do Capitão Nascimento. Um personagem que, em si não destituído de virtudes, tais como coragem, lucidez e honestidade, tem seu caráter corrompido, porque, obrigado a situações limites, acaba fazendo escolhas erradas. Reside aí a complexidade deste personagem, testemunha da fragilidade humana. Nascimento demonstra o fato de que qualquer aspiração a agir corretamente é facilmente aniquilada dentro de contextos que oneram o correto e premiam o errado. O Capitão Nascimento faz a sua escolha pragmática; atuando no meio deste sistema profundamente corrompido, não o renega, e ainda que sabedor das conseqüências de suas ações aí, cumpre seu dever. Em determinado momento do filme ele avisa a seus superiores que garantir a segurança da visita do Papa a determinado local exigirá incursões diárias a zonas urbanas deflagradas densamente habitadas e, portanto, “vai dar merda, vai morrer gente”; mas ele vai, faz o que lhe mandam, com os meios e resultados que ele e nós conhecemos.

O ponto do filme é justamente a denúncia desta situação. Através da exposição da brutal irracionalidade da política de confronto direto, única alternativa que a atual situação da segurança pública permite, busca nos sensibilizar para a necessidade imperativa de modificá-la. Este terrível sistema descrito pelo filme - e cuja pregnância empírica é inegável - na melhor das hipóteses produzirá mais e mais confronto direto, mais e mais capitães Nascimento. Não se oferecem soluções específicas a esta situação, porque o objetivo é denunciá-la – afinal, trata-se de uma obra de ficção - de uma maneira bem informada e contundente, mas obviamente sugere-se sua modificação. Esta modificação exige sabedoria e prudência políticas, capazes de articular medidas que envolvam, entre muitas outras, uma reforma da corporação policial.

Passo agora à questão da recepção do filme. Como uma análise sistemática da mesma não seria possível, limitar-me-ei, aqui, a contra-arrestar dois argumentos que tem sido recorrentes entre a crítica. O primeiro se refere a uma acusação de fascismo feita ao filme e seu autor. Sem levar em consideração o uso um tanto ingênuo de um conceito complexo como “fascismo”, parto da suposição de que tal acusação se baseia numa incompreensão do argumento, incorrendo, portanto, no mesmo erro daqueles que elogiam o filme pelas mesmas razões (o que me parece ainda mais grave). O erro aqui consiste em ler o filme como um elogio à política de confronto e às práticas violentas do Bope. Mas trata-se justamente do contrário! Mais uma vez: o filme denuncia a irracionalidade de um sistema corrupto que torna a política de confronto direto, e a violência descontrolada que dela decorre, o único recurso. Através da exposição das suas conseqüências brutais, o filme ataca o contexto, sugerindo sua modificação. Aqueles que acusam o filme de fascismo foram, portanto, incapazes de aprender corretamente o seu argumento, e o criticam pelo motivo errado. Agora, a respeito daqueles que, incorrendo no mesmo erro, ou seja, que leram o filme como um elogio à violência estúpida, e, ainda assim, aprovaram o filme, não há o que dizer. Não há o que dizer porque estas pessoas se situam fora do limites persuasivos dentro quais a argumentação lógica, minha e do filme, pode ser eficaz, na medida em que não compartilham dos valores que a norteiam. A respeito de tais pessoas pode-se apenas dizer uma coisa: vivem a situação que merecem.

O segundo tipo de crítica recorrente ao filme o acusa de apontar o consumo de drogas pela elite e pela classe média como o responsável pela violência. Sem considerar o tratamento um tanto caricato – ainda que não inverossímil - que se dá às personagens ligadas ao “núcleo PUC”, devo reiterar que o ponto central do argumento é a situação calamitosa da segurança pública, esta sim a grande vilã. No entanto, é verdade também que, sem culpabilizar diretamente a elite e a classe média pela violência, o filme incita as mesmas a uma reflexão sobre suas práticas. O que é muito diferente. O argumento central não exclui, por exemplo, a possibilidade de que a legalização das drogas entre no mix possível de políticas públicas necessárias para a modificação da situação. No entanto, diante da atual situação, ele nos força a pensar seriamente no que fazemos. Dentro do quadro atual, quer nos decidamos ou não pelo uso de drogas ilícitas, é impossível sermos ingênuos a respeito desse uso.

Um estímulo à reflexão sobre um determinado contexto e sobre as conseqüências de nossas práticas dentro deste contexto, nisso reside o valor de “Tropa de Elite”. Seu propósito é profundamente político e moral, sugerindo uma transformação radical da situação atual da segurança pública. Ainda que seja uma obra de ficção, sua temática e proximidade de uma certa realidade cotidiana absolutamente terrível não nos deixa espaço nenhum para o distanciamento, e, portanto, não permite o “prazer desinteressado”, característico da experiência estética. Todos os elementos “estéticos” convergem no filme, como forças retóricas, para o reforço do argumento - o que torna a trama e as personagens, às vezes, um tanto esquemáticas. Mas a bem feita construção de um “sistema” e a exposição de suas conseqüências mais terríveis, reforçada pela contundência bruta das cenas de violência explícita, tornam este filme importante. Por isso mesmo, optei neste texto por não analisá-lo esteticamente, mas sim discuti-lo como uma intervenção no debate público, explorando a qualidade e relevância de seu argumento. Apenas neste sentido, posso dizer que “Tropa de Elite” é um bom filme.

João Duarte.

terça-feira, dezembro 18, 2007

“...a vida, Senhor Visconde, é um pisca - pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”


Monteiro Lobato, “Memórias de Emília”, 1936.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

The Artist

One evening there came into his soul the desire to fashion an image of The Pleasure that abideth for a Moment. And he went forth into the world to look for bronze. For he could only think in bronze.

But all the bronze of the whole world had disapeared, nor anywhere in the whole world was there any bronze to be found, save only the bronze of the image of The sorrow that endureth for Ever.

Now this image he had himself, and with his own hands fashioned, and had set it on the tomb of the one thing he had loved in life. On the tomb of the dead thing he had most loved he had set this image of his own fashioning, that it might serve as a sign of the love of man that dieth not, and a symbol of the sorrow of man that endureth for ever. And in the whole world there was no other bronze save the bronze of this image.

And he took the image he had fashioned, and set it in a great furnace, and gave it to the fire.

And out of the bronze of the image of The sorrow that endureth for Ever he fashioned an image of The Pleasure that abideth for a Moment.

Oscar Wilde, Poems in Prose, 1894

sexta-feira, novembro 30, 2007

“Otelo”

querer o que não se pode dar.
querer tudo, demais, para sempre.
depois nunca mais querer nada.

querer nunca como se melhor não ouvir a voz.
rejeitar o que nos espelha à superfície
dos olhos nas estátuas decapitadas.
almejar pureza, forçar pureza como virtude.
mas que vagos poros pontuam os corpos sonâmbulos?
que hora exata de sede é essa: de se olhar no espelho
ao fim de uma noite de prevaricações?

e logo depois a náusea de ter sede alguma.
ter o que não é possível denominar.
apropriar-se em sangue das ofensas emudecidas.
a compaixão por aceitar a própria indiferença.
o enterro da semente não plantada.


Leo Marona.

domingo, novembro 04, 2007

Meu cadáver


Balanço ao ritmo do mar, minha pele embaixo d´água está esbranquiçada. Meus pelos serpenteiam quase imperceptivelmente e meu cabelo preto, longo e denso se espalha. Meus olhos estão esbugalhados e injetados de sangue. Aos poucos sou levado pela maré em direção à praia de Guaratiba, onde um vento forte levanta areia e derruba cadeiras de plástico em volta de uma mesa. Começa uma chuva fina e eu chego à arrebentação. Levo um caldo, reapareço de cabeça para cima e sou expulso por uma última onda. Meus membros estão roxos e minha boca aberta. Em volta de mim, tatuís correm sofregamente até cavarem seus buracos e desaparecerem. A chuva pára e as nuvens pretas se esticam, dando lugar a um extenso lençol algodoado.
Durante dois dias chuvosos, sou marinado e queimado pelo mormaço. A praia está deserta, é julho de dois mil e sete e a cidade está muito fria. É o pior inverno nos últimos doze anos. Um grupo de pessoas pobres se aproxima e me avista, eu estou com a boca escancarada com dentes cariados e os olhos comidos pelas beiradas. Elas me examinam com uma curiosidade de latino-americano diante de um acidente de trânsito. Uma mulher feia, baixinha e gorda se persigna enquanto os outros se contentam em manter uma pequena distância em sinal de respeito. O efeito mais terrível do meu naufrágio fica aparente nas comissuras dos meus olhos: há sal acumulado em toda a beira, e, nas extremidades, o sal forma com a areia e minha secreção ressecada uma pasta opaca que escorreu até minhas bochechas barbadas.
Os três homens e a mulher se perguntam o que devem fazer. O mais fácil seria ignorar que me viram já que ninguém os sabia ali. A mulher sugere que me cortem o cabelo para vender, ela acha que minhas madeixas, que chegavam à cintura, poderiam render ao menos 300 reais. Todos concordaram. Tinham uma tesoura entre seus pertences recuperados no quiosque da praia e a mulher começou a cortar, enquanto os homens faziam a vigilância. Cortava tão rente que feriu meu couro cabeludo. Três pequenos filetes de sangue escorriam por minha careca depois de completo o serviço da assaltante. Partem rápido, com meu cabelo num saco do Prezunic.
Não fosse o frio e eu já estaria com um cheiro muito mais forte. Meu sangue estancado nas veias me deixa inchado e branco, mas não pareço morto. Não estou perplexo, não estou apavorado, tampouco estou sereno. Meu corpo parece ansiar por uma sutileza. Acho-me bonito careca, quando vivo sempre tive curiosidade de me ver com a cabeça raspada, mas nunca tive coragem de passar a máquina, agora estou muito bonito, como uma figura de Schiele, mas ainda não tão magro e um pouco menos intenso. Minhas pernas estão separadas e estendidas, meu braço esquerdo está sobre minha barriga e o direito ao longo do corpo. Minha cabeça cai um pouco abaixo do nível do tronco por causa de um desnível na areia, deixando meu pescoço ao ar.
Na tarde do meu terceiro dia, aparecem homens com uma maca. Um preto gordo e alto me pega pelos braços e um cearense pelas pernas. Eles estão entediados e se entreolham com um desdém de parceiros na mediocridade. Levado, minha cabeça pende para a esquerda e meus olhos esgazeados apontam para as ondas espumantes, em seguida os trabalhadores manobram e o que tenho frente a meus olhos então é uma encosta verdejante. Mais alguns passos e entro na Kombi, a porta bate num estrépito. O negão arranca, o cearense arrota, e sigo rumo ao IML.
O carro dá muitos solavancos e eu fui muito mal acomodado pelos dois, dou pulos na minha maca, minhas pernas e meus braços pululam a esmo. Passamos por um quebra-molas e o motorista não freia. Eu sou jogado para fora da minha maca, caio de bruços, quebrando um dente e esmagando meu nariz. Depois do susto, o nordestino externa um tsc de desprezo respondido por um não fode. Já estamos na Avenida das Américas.
Parece ser Domingo, o trânsito flui muito bem. Nosso carro é fechado de repente por um fusca. Minha porta é aberta por um homem com um fuzil que me levanta sem olhar para o meu rosto e me leva até o fusca. O negão e o cearense estão rendidos por dois outro homens armados com sub-metralhadoras Uzi .33. Eu sou jogado no banco de trás do carro minúsculo, os dois outros seqüestradores voltam correndo e se acomodam nos bancos da frente. Arrancamos violentamente, cantando pneu. Eles estão muito excitados, dizem que vão me esquartejar seu filho de uma puta. O plano é colocar pedaços de mim em quatro cantos de uma favela controlada pela A.D.A, eles estão na dúvida entre a vila cruzeiro e a favela dos macacos.
Me levam pra Rocinha. No sopé do morro, me levam a um beco e sou colocado num saco preto. Em seguida, Catinga me pega pelos braços, Bidu pela perna direita e Solucinho pela perna esquerda. Eles me levam até um barraco no alto do morro, e me colocam no chão. Passam o dia se comunicando com comparsas pelos telefones celulares. O plano é pra que tudo aconteça sem um tiro sequer, minhas partes vão ser colocadas discretamente em quatro pontos da favela vila cruzeiro, decidiram. Em horário de muita movimentação, Bidu, Solucinho, Catinga e talvez Guarani, não esse guarani fala pra caralho, catinga, bora chamar o Túlio. Tá. vão se misturar ao povo da favela. Minhas pernas vão ser colocadas nas duas pontas da base do morro, meu tronco vai pro alto e minha cabeça vai ser jogada em direção ao centro da favela, onde fica o entroncamento das duas ruas principais da comunidade.
Bidu está na cozinha da casa comendo um sanduíche de presunto com maionese, tem na sua mão grossa um canivete que faz rodopiar com um gesto ágil. Ele está sentado num banquinho pequeno; com o pé direito descalço prende a parte de trás do chinelo do pé esquerdo no ar para fazê-lo estalar, soltando-o na casca grossa da sola imunda. Lança olhares agitados em direção à porta da cozinha e em seguida volta o olhar para dentro, assumindo uma pose inquietante, transmitindo a certeza de que pode voltar à superfície com uma determinação inexorável. Cola algumas migalhas de pão francês ao seu dedo indicador e as leva à boca, em seguida joga seu prato na pia, sai da cozinha, e, com uma resolução firme e inquestionável na voz, convoca Catinga e Solucinho, que estão ensinando dois garotos a soltar pipa, para uma reunião.
Solucinho se senta ao meu lado, evitando tocar no plástico preto que me embrulha, por algum prurido nobre. Catinga fica em pé, recostado à parede do lado de fora da cozinha, rachada por uma infiltração. No meio da sala, Bidu dá as ordens: então Túlio leva uma perna embrulhada em jornal e deixa na entrada de um açougue que tem no começo da ladeira do canto direito. Amanhã eu falo pra ele. A outra perna Catinga vai deixar na casa de uma coroa no começo da ladeira, na outra ponta. A janela fica aberta de manhã então é só chegar sem ninguém ver que tá tranqüilo. –Porra, num açougue, que parada óbvia Bidu!, diz Catinga. È porque ali que é o ponto extremo, não fode. A parte complicada vem agora. É o seguinte: Eu vou ter que chegar no alto do morro, por trás da favela, pra deixar rolar o tronco com os braços do homem borracha até o campinho, que é onde tem o movimento dos alemão. Nessa hora eu sei que lá vai tá vazio, mas eu vou ter que ir pelo mato e sair voado depois. Solucinho vai tá com a cabeça. Tu vai fazer o seguinte, sabe o prédio que tem ali do lado?, pra jogar a cabeça no meio lá, tu vai ter que subir no último andar, já falei com o porteiro, ele é nosso. Tu vai chegar e vai dizer que é da Rocinha, só isso entendeu?, mais nada. Ele vai te dar a chave do telhado, tu vai subir com o embrulho e vai jogar. Tu mira bem, tu é forte, vê se não faz merda. Depois você vai pro carro que vai tá na frente da caixa econômica federal, já com Túlio e Catinga. Cês vêm me pegar lá atrás do morro, na rua Jequitinhonha.
Depois do comunicado fez-se um silêncio tranqüilo na casa. Uma sólida cumplicidade emanava dos gestos e olhares. Bidu se levantava do seu banquinho, afastava da porta da geladeira Catinga que, absorto na contemplação de sua submetralhadora, dava dois passos para o lado automaticamente. Solucinho cortava um papel celofane, pra fazer uma pipa pro meu sobrinho, disse. Primeiro saiu Bidu, sem se despedir e sem ser notado, depois foi Catinga com sua arma nas costas. Solucinho ficou até enrolar o papel celofane a dois pedaços de madeira com barbante, e saiu admirando sua obra. Rojões explodindo interrompiam vez por outra o silêncio da noite calma. Risos ao longe ressoavam docemente, chegavam à sala de meu cadáver junto a uma brisa úmida e fria fazendo esvoaçar meu plástico preto.
Por baixo da mortalha, meu rosto perdeu um pouco de sua vontade de delicadeza. Meus olhos, agora baços, parecem os de um velho deprimido depois do banho. Minha pele esmaecida dialoga com as paredes encardidas em sopros mornos.
As primeiras luzes do dia vêm com Bidu e um homem munido de uma moto-serra. Bidu arranca o plástico preto que me envolve, me examina diligentemente e externa, enfim, um grito rouco e visceral essa porra né homem borracha não caralho puta que pariu. Puta que pariu. Chama o filha da puta do catinga aqui. Agora porra! Bidu tremia vermelho, se eu fosse importante ele estaria em maus lençóis, playboy atrai polícia porra, catinga falou que tinha certeza que aquela porra daquela van tava com homem borracha que tinha sido jogado pra fora da cidade de deus, depois que mataram ele lá comendo a filha de Dedé. Porra de Catinga nem olhou pra cara dessa porra.
Catinga chega com cara de sono e intimidado. Jura que tinha certeza que era ele, pede perdão. Ouve contrito o esporro de seu chefe, coçando o escroto vez por outra. Agora o que tu vai fazer é deixar essa porra bem longe daqui não quero corpo de playboy no meu morro, a gente não sabe nem que porra é essa, pode ter sido filho de alguma porra que se encheu de pó e morreu em rave pode ser qualquer porra. Pega o fusca de madrugada e desova essa porra em qualquer lugar da cidade, bem longe daqui, ouviu? Puta que te pariu catinga tu é foda. Bidu, foi Jessé que me falou pelo celular que tinha acabado de sair uma van do iml lá da cidade de Deus com homem borracha, porra, é muita coincidência, naquele dia com as ruas vazias ter tido duas no mesmo trecho. Foi mal, mas também eles são parecidos pra caralho vendo rápido daquele jeito no meio da rua. Porra, mesma altura, até a cara é um pouco parecida. Foi mal, Bidu, mas foi um azar do caralho.
Na madrugada seguinte, catinga me enrolou em outro plástico preto, me carregou com Solucinho até o fusca e partiu pela cidade, sozinho. Conseguiu, às três da manhã, me deixar na praça general Osório, tendo sido visto apenas por um casal de meninos de rua de doze anos que se chupavam sob uma amendoeira e que continuaram se chupando.
Fiquei descoberto em um canteiro eivado de bitucas de cigarro e grãos de milho jogados aos pombos por velhinhas. Meu pênis pendia, como sempre, para o lado esquerdo como podiam ver as mocinhas indo à praia em seus biquininhos módicos. Meus olhos já eram os de um vermelho pescado três dias antes e meu cheiro já competia com o dos mendigos inchados que habitam a praça. Rebolando jovialmente uma cocker spaniel fêmea não se intimidou e me beijou de língua, ao que correspondi prontamente.


Alvaro Fagundes.

domingo, outubro 28, 2007

paixão das ruas

ela emerge do peito da noite vestida apenas
(amor dos becos e das almas clandestinas)
com sonhos biliares e mil cílios venenosos,
(vertigem de espuma no vento enegrecido)
e ela foge por dentro do oco das entranhas
do amor que permanece, não estando vivo.

ela que me dispersa com seus olhos de cera,
no fio entre os fatos e suas ilhas flutuantes.

à meia-noite, me compõe versos satânicos,
ao amanhecer, sou todo ossos caramelados.

ela que é tudo que passa dentro das valises,
por baixo das marquises do núcleo em transe.

cordilheira espiã das madrugadas agonizantes,
por que você, que é também minha assassina,
(amante só quando me denigre em público),
não se digna ao menos a me dar uma surra,
já que não posso alimentar essa leveza fria
da sensação que causa o toque do teu instante?